A Era dos Fármacos

A nova forma de controle social agora é vendida como salvação.

Natacha Moreira
6 min readDec 10, 2020

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A partir do final do século XX, a dinâmica do tratamento social e médico dos transtornos mentais entrou em processo de modificação. Com a popularização dos antidepressivos e semelhantes por volta dos anos 1980, a necessidade de confinar os pacientes longe de seu meio social em locais disciplinares (asilos, hospitais psiquiátricos) perdeu o sentido. A criação dessas drogas é um sintoma de sociedade pautada no mercado e na ideia de todos como possíveis consumidores, e não mais como meros cidadãos; não seria vantajoso encerrar essas pessoas em um espaço onde não participariam do mundo do consumo. Em vez disso, os mecanismos dos remédios abriram novas oportunidades de lucro — a própria sociedade de controle passou a fabricar as doenças que o mercado pode solucionar, como Edward Shorter já havia apontado em “A History of Psychiatry” (1997): “Um determinado distúrbio pode ter sido pouco notado até que uma companhia farmacêutica afirmasse que possuía uma cura para ele”. Para Shorter, o combo drogas e marketing daria origem a novas epidemias. Dessa forma, programas de marketing são usados para maximizar o uso de antidepressivos (Jureidini & Tonkin, 2006).

Inúmeras controvérsias e incertezas surgiram acerca de se e como os antidepressivos funcionam. Desde a aprovação do marketing direto pelo FDA (Food and Drug Administration) em 1997, as empresas farmacêuticas americanas foram acusadas de exagerar a eficácia das drogas, minimizar os riscos à saúde e criar campanhas de conscientização enquanto cresce o mercado para os produtos, medicalizando em excesso experiências humanas outrora comuns, como o luto e a timidez (Greenslit & Kaptchuk, 2012). Os Estados Unidos e a Nova Zelândia são os únicos países que permitem marketing direto para consumidores (anúncios na TV, em sites, em redes sociais). Segundo o Kantar Media, em 2017, foram gastos mais de US$ 6 bilhões em anúncios. Não é vantajoso para as empresas promover reflexão sobre outras soluções possíveis que, embora mais definitivas, não renderiam tanto lucro (Jorge, 2014).

Não mais temos as regras e leis da sociedade disciplinar agindo de forma coercitiva para trazer o indivíduo de volta ao “normal”, como Foucault (1975) colocou: “instaurou-se um aparelho punitivo, um dispositivo de seleção entre os normais e os anormais”. O normal na sociedade de controle é ser anormal — todos possuem alguma característica que precisa ser “curada” ou aprimorada. A pílulas e terapias entram em campo para levar o indivíduo a um estado ótimo. O foco recai na ideia de progresso e desenvolvimento biotécnico, na superação das limitações do corpo orgânico (o sentir, o sono) e ainda na modulação da personalidade.

A sociedade de controle de Deleuze (1990) tem como objetivo o tratamento dos efeitos somáticos dos transtornos, ou seja, dos sintomas físicos e biológicos, ao contrário das causas psicológicas, comportamentais e ambientais responsáveis pelo estado. Esses tratamentos mais velozes, em comparação com as terapias psicanalistas, por exemplo, é mais um sintoma de uma estrutura sempre em movimento e que valoriza o cumprimento de metas de forma rápida e eficaz. Ao contrário do século XVIII e XIX, não são os médicos os salvadores, mas os fármacos. Essa estratégia rejeita formas subjetivas de processar as experiências vividas e o processo de lidar com as emoções e tudo o que elas significam, levando “a uma certa erosão da esfera afetiva” (Jorge, 2014). Esses sentimentos, quando não permitidos seguir o fluxo natural e bloqueados por químicos, podem transformar-se em emoções ainda mais nocivas no futuro, onde as drogas poderão ser usadas, novamente, para anestesiar os sintomas físicos sem lidar com a fonte.

Os fármacos estão sendo receitados excessivamente, incluindo para pacientes com depressão leve (o que não é recomendado pela OMS), para crianças e adolescentes. Contribuindo ainda mais para esse cenário, a indústria farmacêutica é a fonte primária de informação sobre remédios e tem grande influência na literatura publicada, principalmente em depressão infantil (Jureidini & Tonkin, 2006). A indústria farmacêutica se utiliza de testes com controle placebo para determinar se um antidepressivo é efetivo, mas os testes não foram criados para ou pretendem explicar o porquê de ele funcionar, e análise de dados de experimentos clínicos sugerem que, em geral, drogas como o Prozac não funcionam muito melhor do que os placebos (Greenslit & Kaptchuk, 2012).

Uma análise de dados do Ensino Médio e universitário dos EUA descobriu que jovens adultos eram de seis a oito vezes mais prováveis a atingir a pontuação para transtornos mentais na escala de depressão clínica em 2007 comparado ao mesmo grupo em 1938 (Twenge et al, 2010). Esse dado comprova que a sociedade contemporânea é construída de uma forma não compatível com a subjetividade humana e, que nessa cultura digital e ocidental, muitos são os fatores que contribuem para o aumento do risco de transtornos mentais, principalmente ansiedade e depressão. Em um artigo de 2012, Brandon Hidaka analisa, entre outros componentes responsáveis, o papel do sono (redução da qualidade ou quantidade) e do ambiente social (questões como competição, solidão, “fracasso social”, estresse, valorização de metas externas como o dinheiro, a aparência e o status) para o agravamento desse quadro epidêmico — com mais de 264 milhões de pessoas sofrendo com a depressão no mundo, segundo a OMS.

“O homem moderno provavelmente seria mais resiliente às armadilhas da vida se estivesse fisicamente em forma, bem descansado, livre de doenças crônicas e estresse financeiro, envolto por familiares e amigos próximos e sentisse orgulho de seu trabalho significativo.” (Hidaka, 2012)

A relação do indivíduo contemporâneo com o sono é complexa. Em uma sociedade onde a disposição, a produtividade e os prazos são supervalorizados, o sono é tido como supérfluo, um impedimento orgânico para o alcance dos objetivos. É dessa maneira que se desenvolve a vergonha pelo ócio, a ansiedade pelo amanhã que resulta em noites insones, o medo do fracasso e, claro, o uso de drogas para adiar o máximo possível esse “obstáculo” — como a modafinila, originalmente para pessoas com narcolepsia. Como ressaltou Jorge (2014), o sono é “um sintoma inconveniente, uma disfunção a ser reprogramada, na medida em que não há mais espaço para tal ‘atividade’ na rotina dos sujeitos hiperestimulados da contemporaneidade”.

Já o ambiente social contemporâneo é pautado nas subjetividades alter-dirigidas (Sibilia, 2008). O olhar que o outro tem de mim é quem eu sou — uma máxima cada vez mais difundida pela conexão em rede propiciada pela internet e, mais especificamente, pelas mídias sociais. Essa conectividade global traz uma falsa sensação de intimidade com o outro via postagens que, no mundo “real”, transcreve-se em um sentimento generalizado de solidão. Aumenta o desejo por aceitação, a comparação com o que parece ser as vidas perfeitas alheias e a busca por metas exteriores. Essas metas exteriores promovem uma competição constante consigo mesmo e com os outros — tanto no trabalho como na vida pessoal — para ter melhor desempenho, ganhar mais dinheiro, aumentar o status e consequentemente, nessa linha de raciocínio, ser mais feliz. Competição essa que é até estimulada pela lógica empresarial que domina a sociedade de controle. Quando essas metas não são alcançadas, o sentimento de fracasso entra em cena: se nada é impossível na maravilhosa fábrica de oportunidades do contemporâneo, a decepção pelo fracasso é absorvida pelos sujeitos de forma extremamente prejudicial. Junta-se a isso o estresse do hiperestímulo e da pressão e o culto às aparências e terminamos com uma sociedade extremamente marcada pelos transtornos depressivos e de imagem.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 1975.

GREENSLIT, Nathan & KAPTCHUK, Ted. Antidepressants and Advertising: Psychopharmaceuticals in Crisis. 2012. Yale Journal of Biology and Medicine, 85, pp. 153–158.

HIDAKA, Brandon H. Depression as a disease of modernity: explanations for increasing prevalence. 2012. Journal of Affective Disorders 140, 205–214.

JORGE, Marianna. Desempenho tarja preta. 2014.

JUREIDINI, Jon & TONKIN, Anne. Overuse of Antidepressant Drugs for the Treatment of Depression. 2006. CNS Drugs, 20(8), 623–632.

SHORTER, Edward. A History of Psychiatry: From the Era of the Asylum to the Age of Prozac. 1997. Editora Wiley.

SIBILIA, Paula. O show do eu. 2008. Editora Contraponto.

Twenge, J., Gentile, B., DeWall, C., Ma, D., Lacefield, K., Schurtz, D., 2010. Birth cohort increases in psychopathology among young Americans, 1938–2007: a cross-temporal meta-analysis of the MMPI. Clinical Psychology Review 30, 145–154.

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Natacha Moreira

Carioca, graduanda em Estudos de Mídia — UFF, apaixonada por literatura, arte, história e musicais. Ela/dela.